Melhor vinícola do novo mundo produz no clima mais hostil do planeta
Comandada pelo renomado enólogo Juan Pablo Murgia, Otronia, na Patagônia, enfrenta temperaturas que podem chegar a menos 20 graus
Vinhos de extremos como o nome diz são feitos sob as condições mais adversas possíveis. Podem ser provenientes de desertos, lugares muito altos ou próximos a vulcões. Eleita recentemente a melhor vinícola do novo mundo pela publicação americana Wine Enthusiastic, a Otronia levou ao limite do impossível esse conceito. Localizada em Sarmiento, na Patagônia, a propriedade tem hoje o vinhedo mais austral do planeta. São também as vinhas no clima mais frio do mundo. Por lá, o inverno no último ano bateu menos 20 graus. Em contrapartida, os dias no verão são longos, cerca de 16 horas de luz, o que é importantíssimo para boa maturação das uvas. Não bastassem as temperaturas extremas, há ventos que rugem a cerca de 100 km por hora.
Por que plantar uvas em um lugar com tantos desafios naturais? “Porque resultam em vinhos únicos, com caráter e texturas exclusivas, que conseguem te fazer visualizar esse cenário a cada gole”, explicou à coluna AL VINO Juan Pablo Murgia, o enólogo responsável por esses vinhos, entre eles o melhor Pinot Noir do novo mundo, segundo a inglesa Decanter. Com apenas 40 anos, natural de Luán de Cuyo, em Mendoza, ele é filho e neto de viticultores. Está à frente de 5 vinícolas e fez da agroecologia e viticultura orgânica uma espécie de assinatura de seu trabalho.
Graças ao “caráter” de seus vinhos, ficou na lista dos cinco melhores enólogos do ano pela mesma Wine Enthusiastic, além do prêmio de melhor do mundo com menos de 40 anos, em 2021, pelo “master of wine” inglês, Tim Atkin. Na comunidade do vinho, é considerado um inovador. Uma das técnicas que aplica em seu vinhedo é o “Efeito Iglu”. Para evitar que o vinhedo sofra com frio abaixo de zero grau, são esguichados jatos d’água para que ele congele. Assim, a camada de gelo impede que a planta ou a fruta sofra. Quando o clima esquenta, a vinha retoma de onde havia parado, sem nenhum artifício química. Zero veneno, para quem cuida das vinhas ou para quem consome o vinho.
A coluna conversou com Juan Pablo aqui em São Paulo, antes da degustação comandada por ele na Associação Brasileira de Sommeliers. A seguir, os melhores trechos da entrevista:
Recentemente você disse que não existem mais vinhos ruins, acredita mesmo nisso? Sim, o que existe são diferentes estilos e categorias. Acredito que hoje a vinicultura e os produtores independentemente de escala e lugares, estão fazendo vinhos muito bons. Há uma revolução de aperfeiçoamento de tecnologia, entendimento de terroir e muitos outros aspectos. Há bons vinhos tanto nos grandes mercados, como os grandes vinhos de terroir estão muito próximos em qualidade, cada um na sua categoria, claro.
E por que o seu vinho é considerado tão bom? Ele vem de um lugar muito especial, está é a principal razão. Um lugar único, é uma espécie de revolução, um lugar que tem condições de fazer vinhos únicos. Isso é Otronia.
Ser orgânico é fundamental para a qualidade que você busca? Eu acredito que sim, mas não é só isso. Orgânico é um conceito simples, é uma metodologia e certificação, o mais importante é o respeito e equilíbrio com a natureza que rodeia a mim e ao vinhedo. Eu o defino como agroecologia. Significa entender todos os agentes vivos e não vivos que estão ao redor das vinhas e conviver com eles, coexistir com objeto que todo esse ecossistema esteja mais ativo possível e potencie o caráter e sabor das frutas e, consequentemente, a identidade do vinho. Hoje, os vinhos que mais me emocionam vêm de viticulturas que estão em equilíbrio com o lugar. Pode ser orgânico, biodinâmico, mas sempre com respeito e equilíbrio com o sistema agroecológico.
Para proteger as vinhas das geadas, dos ventos, você usa algum artifício? Algum remédio ou química? Não há nenhum artifício, não! Apesar de serem os vinhedos no lugar mais frio do mundo, é um lugar muito nobre e muito fértil. As vinhas estão muito felizes, nenhuma delas morre, são produtivas. Elas têm baixo rendimento, mas produzem muito bem, têm boa expressão e vigor. Produzem de 500 gramas a 1 quilo por planta. Para fazer um garrafa de Otronia precisamos de duas ou três plantas, por safra. Plantamos em alta densidade, são 7.500 plantas por hectare, para que se protejam do frio e do vento. Geramos um equilíbrio de produção muito bom. Elas produzem o equivalente a vinhedos velhos, no entanto têm 15 anos, são relativamente novas e produzem com equilíbrio muito especial para os vinhos de alta gama que queremos fazer.
Vinhos produzidos com menos madeira e menor teor álcool são tendências que influenciam o seu trabalho? Sim, é uma tendência, mas não sei se influencia diretamente meu trabalho, venho fazendo isso há muitos anos, faço vinhos há vinte anos. Quando comecei, certamente usava-se muito mais madeira, mas, veja, todos os vinhos de Otronia têm muita madeira, 100% deles tem passagem por barricas. A chave é que essa passagem por madeira não se perceba no produto final e que só aporte ao vinho complexidade, esse é o bom uso. Madeira de alta qualidade, sem tosta e (recipientes de) grande volume. Os vinhos têm tanto caráter, tanta potência aromática que a madeira nunca supera e fruta, além claro de ser um uso muito preciso.
Você disse que a Argentina passa por uma ótima fase de produção de vinhos, por que? Creio que são momentos, há uma linha do tempo, passamos por diferentes etapas. Primeiro pela produção massiva, depois o foco centrando na variedade, lugares e sub-regiões, micro regiões, vinhedos, parcelas. Essa enologia de precisão nos têm levado a fazer vinhos de classe mundial. Acredito que é o momento mais interessante e divertido da viticultura na Argentina.
Quais são as regiões produtoras que te inspiram hoje e o que nunca faltam na sua adega? Me apaixona lugares onde Pinot Noir tem excelência. Sou um apaixonado pela Borgonha, sempre estive de olho e agora estou cada vez mais. O Pinot Noir da Patagônia sempre me interessou, mas tenho sempre buscado conhecer de lugares diferentes, novos produtos do novo mundo que fazem Pinot Noir interessantes como Chile, Nova Zelândia, Alemanhã e Áustria, esses dois últimos não são novo mundo, mas não são o clássico francês. Smpre busco projetos que me inspiram. Em casa tomo vinhos de todo lado, claro, mas gosto muito da Alsácia, Borgonha, África do Sul e Nova Zelândia.
Pode-se dizer que você é o produtor de Malbec que virou Pinot Noir? Trabalho muito mais com Malbec do que Pinot Noir, porque meu trabalho maior está em Mendoza, onde nasci. Mas em Otronia temos feito o Pinot Noir mais interessante da Argentina, não só da América do Sul, mas talvez do novo mundo em geral. Acho que, por isso, ultimamente estou muito focado em Pinot Noir.